Grupo de Pesquisa da Profa. Ester Sabino Sequencia o SARS-CoV-2 em Menos de 48 Horas
Dra. Ester Sabino é Professora Associada do Departamento de Moléstias Infecciosas da Faculdade de Medicina da USP. Depois da notificação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil, Sabino e sua equipe de pesquisadores da USP, juntamente com pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz e da Universidade de Oxford (Reino Unido), fizeram o sequenciamento genético do SARS-CoV-2 em menos de 48 horas. Saiba mais sobre esta pesquisadora brasileira e como ela tem contribuído para o desenvolvimento da pesquisa no Brasil.
Atualizado em 5 de maio de 2020
1. Por que você decidiu ser uma pesquisadora?
Desde que entrei no curso de medicina na Universidade de São Paulo (USP), já queria muito trabalhar em pesquisa. Sempre gostei mais de pesquisar do que de fazer clínica; e logo no início de minha carreira fui trabalhar no Instituto Adolfo Lutz. Gosto de pesquisa relacionada à saúde pública.
2. O que fez com que você se interessasse pela Medicina Tropical?
Durante minha carreira, mudei muito. Comecei trabalhando com HIV no Instituto Adolfo Lutz. Depois disso, trabalhei durante muito tempo na Fundação Pró Sangue/Hemocentro de São Paulo com doenças transmitidas pelo sangue. A medicina tropical foi uma coisa que aconteceu mais recentemente, a partir de 2011, quando comecei a trabalhar na USP. Quando ainda estava na fundação, eu trabalhava com doença de Chagas, que também é uma doença transmitida pelo sangue. Foi aí que comecei a me conectar com doenças tropicais. Mas a maior parte da minha vida trabalhei com doenças transmitidas pelo sangue.
3. Como você começou a trabalhar com o SARS-CoV-2?
Na verdade, depois que entrei no Instituto de Medicina Tropical, teve a epidemia de Zika. Assim, voltei a trabalhar com epidemias. Com a Zika, tive contato com vários grupos, principalmente da Inglaterra, por causa de uma chamada com recurso financeiro do Reino Unido para sequenciamento de arbovírus. Já tem um ano que a gente vem trabalhando em conjunto com o Instituto Adolf Lutz nas epidemias do arbovírus, que são dengue, chicungunha, Zika e a febre amarela. Enquanto a gente estava fazendo isso, teve a pandemia do COVID-19. A gente já tinha tudo montado para sequenciar o vírus da dengue, e assim, toda a estrutura já estava criada para sequenciar o SARS-CoV-2. Na verdade, antes disso nenhum de nós estava trabalhando com SARS-CoV-2, mas todo mundo acabou trabalhando com ele. Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo também; eu estava lá fazendo o sequenciamento de outro vírus e daí veio o SARS-CoV-2.
4. Então a sua prática com a pesquisa da dengue é que permitiu o sequenciamento do SARS-CoV-2 em menos de 48 horas?
Na verdade, o que aconteceu foi o seguinte: a gente depositava as nossas sequências em um sistema de banco de dados onde a maioria das sequências estavm sendo depositada em média de 15 a 30 dias depois da notificação do primeiro caso. No nosso caso, assim que foi feita a primeira notificação no Brasil, em 48 horas já tínhamos a sequência. A técnica de sequência em si é rápida e demora de 24 a 48 horas. A gente não fez nada de diferente com a técnica. O que a gente fez foi organizar os dados para sequenciar o vírus quando o primeiro caso de notificação foi detectado… foi uma questão de organização, de estar preparado para fazer isso.
5. Em termos leigos, você poderia explicar por que o sequenciamento genético do SARS-CoV-2 é tão importante?
Com o sequenciamento genético, você consegue entender como o vírus está caminhando nos vários lugares por onde passa. Daí essa informação é depositada em um banco de dados e é disponibilizada para cientistas do mundo todo. Hoje já existem inúmeras sequências do SARS-CoV-2 depositadas em bancos de dados, e cientistas de vários países estão fazendo isso. Assim, você consegue entrar no mapa e entender como as cepas estão indo de um lugar para o outro. O sequenciamento te ajuda a ter uma visão geral de como o vírus está evoluindo e saber quais são as mutações que estão sendo acumuladas. Com essa informação você consegue, por exemplo, ver que, apesar de terem sido fechadas as fronteiras para a China, a sequência do vírus que acabou entrando em um certo país veio da Europa. Ou seja, o sequenciamento ajuda a entender o fluxo do vírus de áreas geográficas diferentes; ele é importante para ver o quanto o vírus está mudando para se fazer vacinas.
6. Existe diferença entre a estirpe do SARS-CoV-2 encontrado no Brasil e a das encontradas em outros países?
Não. A estirpe no mundo inteiro é muito parecida com a da China. Aquela amostra que a gente sequenciou já está com 3 mutações diferentes em relação à original da China. Isso é muito pouco; são 30 mil pares de bases, ou seja, uma mutação a cada dez mil. Então todas as cepas são muito parecidas. São poucas as mutações que se diferenciam uma da outra.
7. Algumas estirpes mais brandas do coronavírus que causam o resfriado comum tendem a enfraquecer em meses mais quentes. Existe alguma pesquisa mostrando que este será o caso do SARS-CoV-2 no Brasil?
Aparentemente, ele está se comportando da mesma maneira como se comportou na China e na Europa. Agora estamos no verão e aparentemente o seu comportamento não foi diferente.
8. Você acha que a razão pela qual o Brasil ainda tem um número baixo de casos se deve à falta de testes, ao comportamento do SARS-CoV-2 em climas mais quentes, ou algum outro fator?
Na minha opinião, ele não evoluiu tão rápido no Brasil porque fizemos uma redução de mobilidade muito antes do que os EUA, apesar de esta redução não ter sido completa. Os EUA reduziram a mobilidade das pessoas somente depois que a epidemia já tinha se instaurado, enquanto no Brasil, a imobilidade foi instaurada antes de a epidemia se instalar completamente. Então a gente conseguiu diminuir um pouco o ritmo de transmissão do vírus porque foram tomadas atitudes na hora certa, principalmente aqui no estado de São Paulo. Pode ser que a gente passe o nosso threshold mas a nossa curva não está crescendo tão rapidamente quanto a do estado de Nova Iorque.
Pode ser que a gente esteja enganado e não esteja percebendo o que realmente está acontecendo pela falta de testes, mas a realidade é que os nossos hospitais ainda não estão superlotados. A expectativa era de que eles superlotassem até o final de abril e começo de maio. Aparentemente, a curva de crescimento continua aumentando, mas não no ritmo que estaria se não tivéssemos feito essa parada. Você pode ver que em São Paulo, apesar de tudo, a mobilidade diminuiu bem, a poluição do ar melhorou, o número de carros diminuiu, os shoppings estão fechados. Só que essa diminuição ocorreu bem antes do que nos EUA, os quais demoraram a tomar uma atitude. Daí os casos subiram, igual aos da Itália.
9. Apesar de o brasileiro ser muito mais sociável que pessoas de outras culturas, me parece que o Brasil levou mais a sério o isolamento social do que outros países.
Acho que não tinha como nós não nos conscientizarmos. As imagens da Itália foram muito fortes na televisão, e a imprensa teve um papel importante nisso. A imprensa do Brasil divulgou muito várias coisas que fizeram com que as pessoas se conscientizassem, mesmo que não completamente porque, apesar de ter diminuído bastante, a gente ainda vê muito movimento em São Paulo. Mas quanto tempo isso vai ficar assim, eu não sei. Isolamento por muito tempo é muito difícil.
Já a China não tinha como se conscientizar. Quando eles perceberam o que estava acontecendo, já estava tudo tomado. Não tinha como saber, ninguém sabia sobre o COVID-19. Eles começaram a ver gente morrer de pneumonia desde o final de novembro até o começo de dezembro. Em pouco tempo descobriram o vírus, desenvolveram testes; não é fácil você ver uma pneumonia no hospital e achar que se trata de uma coisa diferente de tudo o que você já viu.
Aconteceram vários casos antes de se considerar a hipótese de que essa poderia ser uma nova doença, porque no inverno os hospitais estão sempre cheios de gente internada com pneumonia viral. Descobrir que uma pneumonia na verdade é uma doença nova causada por agente diferente demora um tempo, de 20 dias a um mês. Quando eles perceberam que era causada por um outro agente, já tinha muita gente infectada. Agora o Brasil, não. Além da experiência da China, a gente viu a experiência da Europa e dos Estados Unidos.
Essa conscientização não é tão simples; as pessoas realmente se movem quando veem que conhecidos estão doentes. É muito difícil fazer com que as pessoas fiquem em casa sem que antes elas tenham esta experiência, que parem só porque disseram que elas deveriam parar. Além disso, quando as pessoas param, elas ficam sem receber dinheiro. E isso é uma coisa que tem um impacto enorme na vida delas, especialmente quando não se tem nada guardado. Ainda mais aqui no Brasil, onde as pessoas vivem muito no limite, né? Realmente fica muito difícil.
10. Considerando toda a sua carreira, quais descobertas suas tiveram mais impacto na sociedade?
Com relação ao HIV, trabalhei muito aqui no Brasil com sequenciamento viral e resistência primária no programa de AIDS, junto com o Ministério da Saúde. Nesse período, minha maior contribuição foi com o programa de AIDS. Na área de segurança transfusional, participei de vários projetos relacionados ao risco de transmissão de HIV. Tenho um trabalho importante que foi sobre risco de transmissão da dengue. Com relação à doença de Chagas, minha maior contribuição foi em relação à avaliações de testes, história natural da doença de Chagas, e marcador de evolução da doença. Também participei de um projeto do Zika junto com o grupo da Universidade de Oxford, onde a gente reconheceu um grande número de amostras e definiu quando o vírus entrou no país - que foi um ano antes de os primeiros cases serem detectados.
Trabalhei com várias coisas diferentes, né? Aqui no Brasil a gente tem que trabalhar aonde tem recurso financeiro. Nos Estados Unidos é mais fácil você focar somente em uma linha de pesquisa. Aqui não dá para fazer isso. Por isso, tive que mudar de linha de pesquisa de acordo com a possibilidade de receber recursos. Daí a gente acaba pesquisando várias coisas.
11. Que tipo de obstáculos, se houver algum, impedem que você faça o seu trabalho da melhor forma?
Acho que no Brasil falta muito recurso para pesquisa. Além disso, muitas vezes o recurso não vem completo, não é contínuo. Depende muito da economia.
12. Existe alguma legislação que você alteraria para melhorar a forma como a ciência é feita no seu campo?
Aqui no Brasil existe incentivo fiscal para o esporte e a cultura, mas não existe para a ciência. Isso precisa mudar. A ciência precisa desse incentivo.
13. Para terminar, o que você gosta de fazer quando não está pesquisando?
Gosto muito de fazer ginástica, tocar piano e ir ao cinema.
Publicado em 05/05/2020 e atualizado em 23/5/2020
Fotografia de rosto da Profa. Sabino - crédito: Leo Ramos Chaves
Agradecimentos à Flavia Jaszczak por conduzir a entrevista, e à Sheila Vieira pela elaboração e transcrição da mesma.
Sobre Profa. Sabino
Profa. Dra. Ester Sabino fez graduação em Medicina e doutorado em Imunologia, ambos na Universidade de São Paulo (USP), e fez postdoc no Irwin Memorial Blood Center (IMBC, Estados Unidos). De 2015 a 2019, foi diretora do Instituto de Medicina Tropical da USP, e atualmente é Professora Associada do Departamento de Moléstias Infecciosas da Faculdade de Medicina da USP. Investigadora principal dos programas do NIH Recipient Epidemiology and Donor Evaluation Study-IV pediatric e do Sao Paulo- Minas Gerais Neglected Tropical Disease Research Center for Biomarker Discovery. Coordenadora (Investigadora Principal) do projeto PITE FAPESP A translational study for the identification, characterization and validation of severity biomarkers in arboviral infections e do projeto FAPESP/MRC The Brazil-UK Centre for Arbovirus Discovery, Diagnosis, Genomics and Epidemiology (CADDE) financiado pelo Medical Research Council (Reino Unido) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Principais linhas de pesquisas incluem segurança transfusional, HIV, doença de Chagas, arboviroses e anemia falciforme.
Leia algumas das publicações da Profa. Sabino sobre o assunto:
1. Candido, Darlan D. S., Watts, Alexander, Abade, Leandro, Kraemer, Moritz U. G., Pybus, Oliver G.; Croda, Julio, Oliveira, Wanderson, Khan, Kamran, Sabino, Ester C., and Faria, Nuno R. Routes for COVID-19 importation in Brazil. *Journal of Travel Medicine*, taaa042, https://doi.org/10.1093/jtm/taaa042.
2. Oliveira, Léa C., Pereira, Natalia B., Moreira, Carlos Henrique V., Bierrenbach, Ana Luiza, Salles, Flavia C., Souza-Basqueira, Marcela, Manuli, Erika R., Ferreira, Ariela M., Oliveira, Cláudia, Cardoso, Clareci S., Ribeiro, Antonio L., and Sabino, Ester C. ELISA Saliva for Trypanosoma cruzi Antibody Detection: An Alternative for Serological Surveys in Endemic Regions. The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, Vo. 102, Issue 4, 1 Apr 2020, p. 800 - 803, DOI:https://doi.org/10.4269/ajtmh.18-0330.
3. Rezende, Helder R., Romano, Camila M., Claro, Ingra M., Caleiro, Giovana S., Sabino, Ester C., Felix, Alvina C., Bissoli, Jefferson, Hill, Sarah; Faria, Nuno R., Silva, Theresa C. C.; Santos, Ana Paula B., Cerutti Junior, Crispim, and Vicente, Creuza R. First report of Aedes albopictus infected by Dengue and Zika virus in a rural outbreak in Brazil. PLoS One, vol. 15, 2020. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0229847.
4. Oliveira, Claudia D. L., Nunes, Maria Carmo P., Colosimo, Enrico A., Lima, Emily M., Cardoso, Clareci S., Ferreira, Ariela M., Oliveira, Lea C., Moreira, Carlos Henrique V.; Bierrenbach, Ana Luiza, Haikal, Desireé S., Peixoto, Sérgio V., Lima-Costa, Maria F., Sabino, Ester C., and Ribeiro, Antonio L. P. Risk Score for Predicting 2-Year Mortality in Patients With Chagas Cardiomyopathy From Endemic Areas: SaMi-Trop Cohort Study. Journal of the American Heart Association, vol. 9, No. 6 p. 1-13, 2020. https://doi.org/10.1161/JAHA.119.014176.
5. Blatyta, Paula F., Kelly, Shannon, Sabino, Ester, Preiss, Liliana, Mendes, Franciane, Carneiro-Proietti, Ana B., Rodrigues, Daniela O. W., Mota, Rosimere, Loureiro, Paula, Maximo, Claudia, Park, Miriam, Mendrone-Jr, Alfredo, Gonçalez , Thelma T., Neto, Cesar A., and Custer, Brian. Prevalence of serologic markers of transfusion and sexually transmitted infections and their correlation with clinical features in a large cohort of Brazilian patients with sickle cell disease. Transfusion, vol. 60, Issue 2, p. 343-350, 2020. https://doi.org/10.1111/trf.15619.